domingo, 1 de outubro de 2017

ELETROCARDIOGRAFIA E MATEMÁTICA II-EIXO ELÉTRICO MÉDIO

Já tratamos deste assunto aqui. Agora vamos detalhar os aspectos matemáticos do cálculo do eixo elétrico no plano frontal.
A medida do eixo elétrico médio é um aspecto importante na análise do ECG. Na prática clínica utilizamos o sistema hexaxial para determinar o eixo elétrico no plano frontal, mas este método não apresenta geralmente uma precisão boa.
Muitos aparelhos de ECG já incorporam programas que fazem de forma automática as medidas de vários parâmetros, incluindo os eixos de P, QRS e T.
Como os softwares de ECG realizam estas medidas?
Sabe-se que a projeção do vetor eixo elétrico em cada derivação depende do ângulo entre o vetor e a sua projeção na derivação. O valor deste ângulo  pode ser calculado através de relações trigonométricas obtidas com o uso das medidas em duas derivações, por exemplo, DI e aVF.
O cálculo do eixo envolve a obtenção da função inversa da tangente: arctangente do ângulo (arctan ou tan-1). Assim:
arctan x = Lead aVF/Lead I.
Ou seja: determinar o ângulo x cuja a tangente é igual a razão aVF/I.
Sendo mais preciso, algumas correções têm que ser realizadas de acordo com o quadrante onde se encontra o eixo elétrico. O ângulo obtido (x) será entre o vetor eixo médio e a derivação DI. Assim, tem que se fazer ajuste na polaridade (por exemplo, o eixo será negativo se DI for positivo e aVF, negativo) e/ou no valor encontrado, se o eixo está à direita.
Outra correção deve ser realizada, uma vez que o cálculo é realizado através da comparação entre uma derivação unipolar e outra bipolar (no caso aVF e D1). A amplitude da derivação unipolar deve ser multiplicada por um fator.
Para o valor ser acurato, se faz necessário corrigir aVF, multiplicando-a por um valor:
Eixo=± arctan (aVF/I).
A amplitude de aVF deve ser multiplicada por 2/√3, ou seja, aproximadamente, 1,1547. A fórmula ajustada é:
Eixo=± arctan (2aVF/√3 I).
Por isso, quando o QRS tem igual amplitude em D1 e aVF,  por exemplo, igual a 9 mm em D1 e 9 mm em aVF, o eixo elétrico no plano frontal não é exatamente 45 graus.
Numa análise inicial, o eixo apresenta a mesma projeção em D1 e aVF, assim deveria se projetar em 45 graus (metade de 90 graus), conforme podemos observar na figura:

Fig. Sistema hexaxial mostrando um eixo a 45 graus. Este vetor eixo elétrico (seta) apresenta a mesma projeção em D1 e aVF. O ângulo x,  obtido entre o vetor e D1, é igual a tangente da razão aVF/D1 (projeção do eixo em aVF e D1). Modificado de figura do sistema hexaxial de referência da Wikipedia.

Ou de outra forma:
Eixo=± arctan (aVF/I).
Eixo=± arctan (9/9).
Eixo=± arctan 1.
Arctan de 1=45. O ângulo cuja a tangente é igual a 1 é 45 graus.
De forma mais precisa, porém,  o cálculo deve ser assim realizado:
Eixo=± arctan (2aVF/√3 I).
Eixo=± arctan (18/15,59).
Eixo=± arctan 1,1546.
O ângulo cuja a tangente é igual a 1,1547 é 49,10 graus.
Portanto, o eixo elétrico médio do QRS ou P quando amplitude é a mesma em D1 e aVF é 49,1 graus.
Outra questão: 
Um traçado de ECG apresenta um QRS com amplitude de 10,4 mm em D1 e 6 mm em aVF. Qual o eixo do QRS?
Eixo=± arctan (2aVF/√3 I).
Eixo=± arctan (2x6/√3 x 10,4).
Eixo=± arctan (12/18,01).
Eixo=± arctan 0,666.
Eixo= 33,66 graus.
Sem a correção, o valor obtido é de 30 graus.
Os valores de cada derivação correspondem as amplitudes líquidas das deflexões, isto é, as deflexões positivas menos as negativas. A forma mais precisa é pela obtenção das áreas dos complexos. Os complexos são medidos pelas áreas ocupadas pelos deflexões em unidades ashman, ou seja, em mm quadrados (0,04 mm.s), que equivale a 1 quadrado pequeno na padronização usual (25 mm/s e 10 mm/mV). Uma forma mais utilizada e simples é pela medida somente das amplitudes das deflexões positivas e negativas em cada complexo.
Na prática, o eixo elétrico pode ser determinado com aproximação usando o sistema hexaxial. Do ponto de vista clínico, o mais importante é saber se o eixo está normal, ou desviado para a esquerda ou direita.

Referências:
  1. http://www.rapidtables.com/calc/math/Arctan_Calculator.htm
  2. Novosel D, Noll G, Lüscher TF. Corrected Formula for the Calculation of the Electrical Heart Axis. March 1999 (Volume 40, Number 1).
  3. Madanmohan AB, Sethuraman KR, Thombre DP. A formula for quick and accurate calculation of cardiac axis from leads I and aVF. Med Sci Res 1991;19:313-4.

ATUALIZAÇÃO: CRITÉRIOS PARA DIAGNOSTICAR IAM ASSOCIADO A BRE

O IAM associado a BRE foi um assunto tratado neste Blog, por exemplo, aquiaqui e aqui.
A maioria dos pacientes atendidos com suspeita de IAM e BRE (novo ou presumidamente novo) não apresenta síndrome coronariana aguda, conforme discutimos previamente no final desta postagem.
Frequentemente o que se observa é o paciente com cardiopatia crônica apresentar dispneia (descompensação de IC, EAP) e procurar atendimento nas UPAs ou Emergências. O BRE seria de outras etiologias, geralmente condições crônicas: cardiomiopatias, cardiopatia hipertensiva, esclerose e calcificação do sistema de condução, entre outras. Em serviços de Cardiologia, o  BRE está entre as principais causas de ativação inadequada de serviço de hemodinâmica.
No entanto, o IAM associado ao BRE precisa ser reconhecido, uma vez que estes pacientes apresentam uma mortalidade elevada, maior do que aquela dos pacientes com IAM com supra de ST e sem BRE. Tais pacientes precisam receber o tratamento adequado, incluindo a terapia de reperfusão, se indicado.
Uma revisão sistemática recente concluiu que o BRE novo em pacientes com infarto agudo é associado a maior mortalidade em 30 dias (OR: 2.10, 95% CI 1.27 to 3.48) e 1 ano (OR: 2.81, 95% CI 1.64 to 4.80) e maior risco de insuficiência cardíaca.
Para o diagnóstico de IAM associado a BRE são usados os conhecidos critérios de Sgarbossa, que têm como limitação um sensibilidade baixa, em torno de somente 20%. Porém, a presença de supra concordante é um bom preditor de infarto com artéria ocluída.
O terceiro critério de Sgarbossa - supradesnível do ST ≥ 5 mm em discordância com o QRS – é o menos acurato dos três critérios, apresenta menos peso e não é suficiente isoladamente para diagnosticar IAM associado a BRE. Na verdade, estamos "cansados" de vê BRE com supra de ST ≥ 5 mm em V2-V3 em pacientes com cardiopatia crônica, na ausência de coronariopatia ou infarto agudo. Este é um critério que é, também, pouco específico.
O supra de ST no BRE guarda proporcionalidade com a amplitude das ondas S nestas derivações. Grandes complexos QRS tendem a apresentar grandes supras de ST nas derivações V1 a V3. Ondas S muitos amplas em V1 a V3 são comuns em caso de BRE associado a valvopatia aórtica, cardiomiopatia hipertensiva e dilatada (idiopática).
O critério de Smith considera a relação de proporcionalidade entre o ST e o QRS: medida da relação entre o supra do ST no ponto J pela amplitude da onda S ou R, que deve ser ≤ - 0,25, ou seja, um supradesnivel ou infradesnível do segmento ST discordante maior do que 25% da amplitude do complexo QRS é critério para diagnosticar IAM na presença de BRE.
A substituição do critério de Sgarbossa ST discordante ≥ 5 mm por este de Smith, com manutenção dos outros dois (critérios 1 e 2) resultou em significativa melhora na acurácia (melhora da sensibilidade e manutenção da alta especificidade) para o diagnóstico de IAM associado a BRE.
Estes são os critérios de Sgarbossa modificados (Sgarbossa-Smith) que devem ser usados na suspeita de IAM associado a BRE:
  • Supra do ST concordante ≥ 1 mm;
  • Depressão de ST ≥ 1 mm e V1-V3;
  • Supra de ST em qualquer derivação, ≥ 1 mm e ≥ 25% da amplitude da onda S precedente (critério de Smith) (razão ST/onda S ≥ 25%).
Basta qualquer um destes três critérios estar presente em uma derivação pelo menos.
O critério de Smith inclusive já foi incorporado em um algoritmo proposto em artigo de revisão que tem Sgarbossa como co-autora.
Outros aspectos como níveis seriados de troponina, considerando o quadro clínico apresentado pelo paciente são importantes para o diagnóstico neste cenário. A ecocardiografia à beira do leito, se disponível, ajuda a esclarecer, ao mostrar alteração da motilidade segmentar no caso de IAM.


A figura é de um ECG de paciente com sintomas isquêmicos e bloqueio de ramo esquerdo (BRE).  Rimo sinusal, BRE, ausência de supra concordante e infra de ST em V1, V2 ou V3. O infra de ST nas derivações com onda R (exemplo: V6) é esperado no BRE-alteração secundaria da repolarização ventricular. Da mesma forma, o supra de ST em V1 a V3 é esperado no BRE. Porém, este supra em algumas derivações é excessivo, ≥ 25% da onda S (critério de Smith, ver detalhe a direita). Portanto, IAM associado a BRE. Neste traçado, em V4 tem um entalhe bem evidente (sinal de Cabreira), que pode ser observado no BRE associado ao infarto antigo ou recente.

Referências:

  1. Al Rajoub B, Noureddine S, El Chami S, Haidar MH, Itani B, Zaiter A, Akl EA. The prognostic value of a new left bundle branch block in patients with acute myocardial infarction: A systematic review and meta-analysis. Heart Lung. 2017 ;46(2):85-91.
  2. Sgarbossa EB, Pinski SL, Barbagelata A, Underwood DA, Gates KB, Topol EJ et al. Electrocardiographic diagnosis of evolving acute myocardial infarction in the presence of left bundle-branch block. N Engl J Med 1996;334:481-7.
  3. Madias JE, Sinha A, Ashtiani R, et al. A critique of the new ST-segment criteria for the diagnosis of acute myocardial infarction in patients with left bundle-branch block. Clin Cardiol. 2001;24(10):652-5.
  4. Smith SW, Dodd KW, Henry TD, Dvorak DM, Pearce LA. Diagnosis of ST Elevation Myocardial Infarction in the Presence of Left Bundle Branch Block using the ST Elevation to S-Wave Ratio in a Modified Sgarbossa Rule. Annals of Emergency Medicine 2012;60:766-76.
  5. Cai Q, Mehta N, Sgarbossa EB, Pinski SL, Wagner GS, Kaliff RM, et al. The left bundle-branch block puzzle in the 2013 ST-elevation myocardial infarction guideline: From falsely declaring emergency to denying reperfusion in a high-risk population. Are the Sgarbossa Criteria ready for prime time? Am Heart J 2013;166:409-13.
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