Hidroxicloroquina
(HCQ) e COVID-19
Em meio a pandemia de COVID-19, em que pese
a falta de evidência de eficácia, a hidroxicloroquina (HCQ) vem sendo usada
como uma terapia para enfrentar este novo coronavírus (Sars-Cov-2). Estudos
clínicos estão sendo iniciados com esta antiga medicação derivada da
cloroquina, usada no tratamento da malária. A Organização Mundial da Saúde (OMS) está
patrocinando um grande estudo multicêntrico internacional (SOLIDARITY Trial)
com estratégias para tratar Covid-19, incluindo cloroquina e HCQ.
Sintetizada em 1946, pela a adição do
radical hidroxila à cloroquina, a HCQ mostrou ser menos tóxica. Em virtude de sua ação
imunomoduladora, a HCQ é aprovada para uso nas doenças autoimunes, como lúpus
eritematoso sistêmico e artrite reumatoide.
HCQ
e Prolongamento do QTc
Uma das preocupações com a HCQ é a
possibilidade dessa droga causar prolongamento do intervalo QT e induzir arritmias
malignas tipo torsades de pointes.
Os casos relatados são muito raros, geralmente
após uso uso crônico, para o tratamento de doenças autoimunes, ou em casos de
intoxicação aguda (overdose).
Em princípio, é improvável a HCQ causar
grande prolongamento do QTc e torsades, em uso por pouco período de tempo.
Entretanto, estamos diante de uma situação nova. Neste
contexto de COVID-19, trata-se de pacientes com condição aguda,
geralmente idosos, com disfunção orgânica e comorbidades, possível uso de
medicações que alterem o QT (polifarmácia), presença de injúria miocárdica em alguns casos e distúrbios
eletrolíticos, que são condições que podem predispor ao surgimento de QT longo,
e arritmias com risco de vida.
No pequeno e limitado estudo francês de HCT
em COVID-19, alguns pacientes utilizaram azitromicina associado a HCQ, o que
tem sido sugerido como terapia em alguns protocolos iniciais.
Destacamos que a azitromicina e outros macrolídeos têm sido relatados a
prolongamento do QTc e/ou torsades, de forma melhor documentada
do que é relatado com a HCQ. A azitromicina recebeu um alerta de segurança do FDA
em 2013, baseado em vários relatos de casos e em um estudo de coorte publicado no NEJM, que
observou aumento de mortalidade de causa cardiovascular com este
antimicrobiano.
Chama atenção um relato de Hancox
et al sobre um documento de 2013 do laboratório fabricante do Zitromax (link com página atualmente indisponível), que citou um estudo com 116 pessoas saudáveis, comparando o aumento do QTc
após administração de 1000 mg de cloroquina isolada ou associada a doses
crescentes de azitromicina (500-1000-1500 mg). Foi observado aumento do intervalo
QTc com a administração dos dois fármacos, correlacionando-se com as doses de
azitromicina: aumento de 10 ms (dose de 500 mg) e de 14 ms (dose de 1500 mg).
Como
Medir o Intervalo QTc
A medida do QTc deve fazer parte
rotineiramente da interpretação do ECG.
O intervalo QT é medido do início do QRS ao
término da onda T e engloba a despolarização e repolarização ventricular
(sístole elétrica).
Para realizar a sua medida, seleciona-se a
derivação onde o QT é mais prolongado, em geral de V2 ou V3. O valor encontrado
deve ser corrigido pela frequência cardíaca, uma vez que a sístole elétrica
aumenta à medida que aumenta o intervalo RR: quando diminui a frequência
cardíaca (FC), aumenta o intervalo RR e o QT; quando aumenta a FC, diminui o
intervalo RR e o QT.
Para fazer a correção pela frequência
cardíaca e obter o QTc existem várias fórmulas, sendo a equação proposta por
Bazett a mais utilizada em estudo clínicos.
Bazett:
QTc=QT
medido/√RR
Ou pela fórmula derivada:
QTc=QT x √(FC/60).
QTc=QT x √(FC/60).
Onde, nesta última fórmula: QT medido
multiplicado pela raiz quadrada da razão FC/60. FC=frequência cardíaca: 1500/número de
quadrados pequenos no traçado do ECG na velocidade usual de 25 mm/s.
Quando a frequência cardíaca encontra-se
reduzida (<50 bpm="" elevada="" ou=""> 100 bpm), a fórmula de Bazett pode
fornecer um valor irreal, sendo recomendado usar uma fórmula linear como a de Hodges: 50>
QTc
=QT medido + 1,75 (FC−60).
Deve-se considerar a derivação onde o QT medido é mais prolongado e o ciclo RR precedente como parâmetro para o intervalo RR.
Deve-se considerar a derivação onde o QT medido é mais prolongado e o ciclo RR precedente como parâmetro para o intervalo RR.
Valor considerado aumentado (QT prolongado): QTc maior do que 0,45s nos homens e maior do que 0,46s nas mulheres. Nas crianças
(< 16 anos) pode-se considerar como aumentado um QTc > 0,45s.
No geral, o QTc é considerado curto quando
é menor ou igual a 0,39s.
Como
Monitorar o QTc
A monitorização do intervalo QTc deve ser
realizada por meio da realização periódica do ECG, fazendo o cálculo conforme
explicado anteriormente.
Um recente documento preliminar publicado faz
as seguintes recomendações para pacientes com COVID-19 usando hidoexicloroquina
e azitromicina:
1.
Obter ECG antes de iniciar e
diariamente. Calcular o QTc (usar Bazett na maioria das situações).
2.
Descontinuar todas as outros
medicações que prolongam o QT.
3.
Manter telemetria contínua
enquanto sob tratamento.
4.
Não iniciar se QTc > 500 ms
ou > 550 ms na presença de estimulação artificial (marcapasso) ou bloqueio
de ramo.
5.
Descontinuar esta terapia se
ocorrer aumento de ectopias ventriculares ou se ocorrer TV polimórficas.
A presença de fatores de risco para prolongamento do intervalo QTc e torsades, tais como idade avançada, associação de drogas que aumentam o QTc, condição médica aguda, hipocalemia e bradiarritmias são fatores descritos que exigem maior atenção e monitorização com rigor. O nível sérico elevado da droga também é um fator relacionado a maior ocorrência de aumento do QTc/torsades. Finalmente, lembramos que arritmias que arritmias são relativamente comuns em pacientes com COVID-19 pela condição em si, com 16,7% dos pacientes desenvolvendo arritmias e 7,2% dos casos evidenciando injúria cardíaca aguda, conforme série de casos de Wuham
Quais
Drogas Podem Prolongar o QTc
Inúmeros fármacos podem
ocasionalmente causar prolongamentos do QTc e taquiarritmias, principalmente
torsades de pointes:
1. Antiarrítmicos: sotalol, amiodarona,
propafenona.
2. Psicotrópicos: antidepressivos
tricíclicos (amitriptina), antagonistas da recaptação da serotonina, lítio,
antipsicóticos
3. Outras medicações: anti-histamínicos,
antibióticos (azitromicina, quinolonas, claritromicina, pentamidina), agonistas
opioides, propofol, sevoflurano, antineoplásicos, entre outras.
Alguns antipsicóticos apresentam um
risco considerado elevado, por exemplo: teorisazina (Melleril), ziprasidona
(Geodon) e haloperidol, especialmente em doses altas IV (evitar IV). Alguns
antipsicóticos de nova geração (ex.: risperidona e quetiapina) parecem conferir
um risco menor, com poucos relatos de casos. O risco parece relativamente baixo
também com inibidores da recaptação da serotonina: escitalopram, flouxetina,
paroxetina e sertralina.
Conclusões
A hidroxicloroquina é usada de forma prolongada por Reumatologistas, Dermatologista e outros clínicos em pacientes com doenças autoimunes, com bom histórico de segurança mesmo em uso crônico e relato muito raros de arritmias malignas induzidas por aumento do QT.
Agora esta droga vem sendo indicada de forma off-label e em protocolos de pesquisa em COVID-19, uma nova doença viral aguda (coronavírus) que pode cursar com pneumonia e insuficiência respiratória aguda. Considerando que o uso é por curto intervalo de tempo, parece ser improvável a ocorrência de arritmias graves tipo torsades causadas por prolongamento do QTc pela HCQ isoladamante. A maior preocupação é a associação de outros fatores de risco, como condições que podem predispor ao surgimento de QT longo, especialmente a associação de drogas como a azitromicina, já implicada em aumento do QTc/torsades. Nestes casos recomendamos seguir um protocolo de monitorização do intervalo QTc, não iniciar se QTc basal muito prolongado, ter atenção à ocorrência de arritmias tipo torsades durante o tratamento (monitor), descontinuar outras drogas associadas que prolongam o QTc antes de iniciar e indicar suspensão da terapia com HCQ e azitromicina em situações específicas (ver acima).
Conclusões
A hidroxicloroquina é usada de forma prolongada por Reumatologistas, Dermatologista e outros clínicos em pacientes com doenças autoimunes, com bom histórico de segurança mesmo em uso crônico e relato muito raros de arritmias malignas induzidas por aumento do QT.
Agora esta droga vem sendo indicada de forma off-label e em protocolos de pesquisa em COVID-19, uma nova doença viral aguda (coronavírus) que pode cursar com pneumonia e insuficiência respiratória aguda. Considerando que o uso é por curto intervalo de tempo, parece ser improvável a ocorrência de arritmias graves tipo torsades causadas por prolongamento do QTc pela HCQ isoladamante. A maior preocupação é a associação de outros fatores de risco, como condições que podem predispor ao surgimento de QT longo, especialmente a associação de drogas como a azitromicina, já implicada em aumento do QTc/torsades. Nestes casos recomendamos seguir um protocolo de monitorização do intervalo QTc, não iniciar se QTc basal muito prolongado, ter atenção à ocorrência de arritmias tipo torsades durante o tratamento (monitor), descontinuar outras drogas associadas que prolongam o QTc antes de iniciar e indicar suspensão da terapia com HCQ e azitromicina em situações específicas (ver acima).
Calculador do QTc AQUI
Exemplo
de ECG mostrando aumento acentuado do QTc, causado por uso de medicação.
Referências
1.
Oliveira Neto, NR. ECG-Ciência
e Aplicação Clínica. 1 ed. 2016. Editora Savier: São Paulo, SP
2.
Chun-Yu Chen, Feng-Lin Wang,
Chih-Chuan Lin (2006). Chronic Hydroxychloroquine Use Associated with QT
Prolongation and Refractory Ventricular Arrhythmia, Clinical Toxicology, 44:2,
173-175.
3.
Hancox JC, Hasnain M, Vieweg
WVR, et al. (2013). Azithromycin,
cardiovascular risks, QTc interval prolongation, torsade de pointes, and
regulatory issues: A narrative review based on the study of case reports. Ther Adv
Infect Dis; 1(5): 155–165.
4.
Svanström H, Pasternak B, Hviid
A. (2013) Use of azithromycin and death from cardiovascular causes. N Engl J
Med 368: 1704–1712.
5.
Brigham and Women’s Hospital
COVID-19 Critical Care Clinical Guidelines. (Updated: 3/23/2020).
6.
https://www.covidprotocols.org
8.
Wang D, Hu B, Hu C, et
al.Clinical Characteristics of 138 Hospitalized Patients with2019 Novel
Coronavirus-Infected Pneumonia in Wuhan, China. JAMA. Published online February
07, 2020. doi:10.1001/jama.2020.1585
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